terça-feira, agosto 26, 2008

Todas essa coisas (ou um texto sobre o "já)


Eu já morei em tanta casa que eu nem me lembro mais. E pode ser que mês que vem eu mude de novo... Já morei com meu pai, mas não lembro como foi. Já morei com minha mãe, depois sem ela, agora com ela e daqui a pouco sem ela de novo. Já quase tive uma irmã de verdade, mas ela esqueceu de abrir os olhos depois que nasceu. Já tive amigas que hoje eu nem vejo mais. Já tive um poodle que morreu de leishmaniose. Depois um Yorkshire que foi tosado e virou um Schnauzer. Agora só tenho uma cachorro de pelúcia anti-alérgico.

Já pesquei jacaré no rio Negro e vi o encontro dele com o Solimões. Já tive cabelo vermelho, metade-louro, metade-roxo e depois cansei. Já fui melhor aluna da sala e aluna-problema do colégio. Já gostei de Sandy e Junior e já li Capricho. Já fiz terapia, já brinquei na rua e já bati o carro. E até hoje ainda tenho um pouco de medo de dirigir.

Nunca fui acampar. Nunca fui dama-de-honra. Nunca comi açaí. Já chorei porque não tirei dez na prova. Já chorei de saudade e até assistindo sessão da tarde. Já quis ser popular e já fui em micareta. Já quis sumir depois de uma festa e já achei que todo mundo ia lembrar pra sempre do que eu tinha feito. Hoje nem eu lembro mais.

terça-feira, agosto 12, 2008

Êta vida besta

Acabara de acordar e só ouvia um burburinho. Deviam ser as pessoas no quintal – sua janela dava para lá e sempre depois de uma grande festa a família se reunia no dia seguinte, pra contar os causos da noite anterior e comer tudo que sobrava. Esperou um pouco na cama até o mau-humor matinal passar. Tirou o pijama, foi ao banheiro lavar o rosto e juntou-se aos outros. Contavam histórias da tia que ficou bêbada e chamou um rapaz de bicicleta pra entrar na festa – lá pelas 3 da manhã... Agora de perto, o burburinho se transformava em barulho e agitação de pessoas falando alto, rindo alto e disputando a vez de falar.

Enquanto isso na cozinha, a avó esquentava o arroz e cantava uma de suas cantigas da igreja. Toda hora alguém entrava e pedia um talher, ou um copo. A avó entregava e continuava cantando. As crianças corriam, os cachorros pediam comida. Um deles, o mais perspicaz, olhava ao redor esperando alguém se distrair: pulou no prato de um menino que saiu chorando. Foi expulso aos xingos. Amanhã era segunda-feira e todo mundo ia embora de novo. Fazia tempo que a família não se juntava assim. Ela só ouvia os causos, ainda com sono e preguiça de falar. Mas era bom estar ali.

quinta-feira, julho 31, 2008

As ugly as I seem


Fernanda é uma dessas pessoas que acha que é diferente, mas é igual. Sempre tem vontade de ir pra mais longe, de sair correndo ou até voando, mas quando chega do outro lado sente vontade de voltar. Sempre se sente só, mas quando muito acompanhada tem vontade de fugir. Às vezes sente vontade de sumir, nem sabe bem porquê. Às vezes se acha interessante – gosta de músicas que poucas pessoas gostam, vê filmes que muita gente não viu e freqüenta museus. Na maioria das vezes acha que não faz diferença nenhuma no mundo. Às vezes se cansa dos amigos. Depois cansa de si mesma. Sente-se incompreendida, mas também pensa que talvez não saiba mesmo explicar. Às vezes tem idéias mirabolantes e vontade de se movimentar. Na maioria das vezes é vencida pela inércia. Tem muitas vontades de não-sabe-o-quê. Num dia faz regime e no outro decide que gosta de comer. Num dia quer ser saudável, fazer caminhada e comer frutas. No outro quer voltar às 6 da manhã. Gosta de dormir, mas sempre tem insônia. Às vezes fala sem pensar. No resto das vezes é irônica. Gosta de piadas infames e desenho animado. Tem saudades e chora. Toma vacina pra alergia uma vez por semana. Não gosta de crianças, mas gosta de cachorros. Às vezes se sente feliz. Nas outras vezes se sente só. O último exemplar de alguma espécie.

domingo, junho 08, 2008

Jogo da vida


Você pode formar na faculdade ou passar pelo outro lado do tabuleiro. Pode ter cinco filhos ou nenhum. Pode acabar milionário ou falido, pode achar petróleo e perder tudo apostando na roleta. Mas aconteça o que acontecer, você tem que pagar seus impostos e parar no dia do casamento. Na maioria das vezes, você queria o carrinho azul, mas só sobrava o vermelho. Quando ninguém estava olhando, você jogava o dado de novo e ganhava cavalos premiados. E quando o jogo acabava, achava sem sentido atravessar todas as casinhas contando só com a sorte, como se toda a sua vida pudesse ser decidida apenas com um dado. Então talvez fosse melhor jogar War – no fim, as coisas também eram decididas pelo dado, mas na caixa estava escrito “jogo da estratégia”. O problema era que, no meio do jogo, alguém sempre achava que havia um complô e jogava as pecinhas de todo mundo pro ar. A única opção então era algum jogo de cartas. Mas sempre tinha alguém que não sabia as regras e, na hora da explicação, outro alguém sempre discordava da utilidade de uma carta. Às vezes um terceiro alguém se cansava da confusão e ia embora. Às vezes esse alguém era você. Mas mesmo com as discussões, a gente insistia em jogar de novo outro dia. Até o dia em que a gente entendeu o que eram os impostos e a guerra do Oriente Médio. Se todo mundo ia discutir no final, melhor nem jogar. Se as pecinhas iam todas para o ar no meio do jogo, melhor nem arrumar o tabuleiro. Não que o jogo não fosse mais divertido, nem que as brigas não pudessem ser resolvidas. Mas a velha sensação de saber como tudo ia acabar, a clara impressão de que alguém ia apelar antes do final, a possibilidade de ser vítima ou parte de um complô, tudo isso dava vontade de deixar os jogos guardados no armário, esperando o tempo passar enquanto se juntava coragem para mais uma discussão.

domingo, março 30, 2008

La belle mer


Talvez ela sempre soubesse que ia ser assim. Mas quis se arriscar mais uma vez. Afinal, ficar sentada na areia vendo as ondas irem e virem não era assim tão ruim. Mas não comparado à aventura de enfrentar o mar. Aquela água inquieta tentando derrubar tudo que vem na direção contrária, aquele chão instável que, vez ou outra, ainda tinha uma alga chata pra incomodar, o sal enrugando ainda mais a pele...

Mas ela já sabia que nunca se dava bem com o mar. Nunca conseguia vencer as ondas, acabava sempre levando mais um caldo. Mas quis insistir. Pensou que se tomasse cuidado talvez conseguisse enfrentar todos os obstáculos e sair ilesa da água. Cansou da areia e pensou que era hora de tentar de novo.

E até achou que estivesse indo bem... Quando o chão embaixo de seus pés se desfez pela primeira vez não desanimou, continuou em frente, enfrentando as ondas. Mas a maré começou a subir, as ondas ficaram mais fortes e o caldo foi inevitável. Então se convenceu de que realmente não sabia lidar com toda aquela água ao seu redor. Resolveu que não ia mais voltar. A areia, na verdade, era melhor. E ela e o mar nunca iam se entender. (Pelo menos até ela se cansar da areia mais uma vez...)