sábado, junho 30, 2007

Quanto mais simplicidade...


Coisas que a gente lê e precisa dividir com o mundo:

Pegava Eduardo pelo braço, levava-o para o banheiro. Seu rádio, pequeno e barato, só funcionava no banheiro, em cima do aparelho sanitário. Sem se preocupar em descobrir a razão, o velho escutava música sentado no bidê.

- Deve ser por causa do encanamento que serve de antena - explicou-lhe Eduardo um dia.

O velho Germano fitou-o longamente, desligou o rádio, levou-o para fora do banheiro.

- Por isso é que você não vai para a frente, meu filho. Entende as coisas demais, quer encontrar explicação para tudo. Era tão simpático da parte dele, só tocando onde bem entendesse. Então minha privadinha é uma antena? Você criou um problema para mim.

-Me desculpe.


(In: SABINO. Fernando. O encontro marcado. Rio de Janeiro: Record. 2007. pg. 182)

sexta-feira, junho 29, 2007

Comunicação e costura



“O ministério do saber adverte: conhecimento não deve ser numerado de 1 a 15. Ou qualquer que seja o número”.

Macunaíma. “Um livro totalmente sem sentido. O cara nasce e depois já fica grande. Começa no meio do mato e do nada o personagem vai para a cidade”. Me informou, há cerca de seis anos, uma prima leu o livro para fazer vestibular. Na aula de literatura, recordo o professor comentando algo sobre Oswald de Andrade. Mas a semana de arte moderna de 1922, estudei mesmo foi na aula de história. “Um acontecimento muito importante para o Brasil”, informou a professora, sem explicar direito o porquê da importância.
Tempos atrás, ainda, houve uma minissérie na televisão que contava a história de São Paulo. Assisti alguns capítulos e lembro que alguns dos Andrades (Mário ou Oswald) mantinha um affair com Tarsila Amaral.
Até o dia em que entrei na sala 2, terceiro andar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, e a professora falava sobre índios e antropofagia. Não muito tempo depois, assistíamos ao filme Macunaíma. Impressionou-me a bela imagem da tela – ótima qualidade para uma película razoavelmente antiga – mas impressionou-me ainda mais a história. Minha prima havia me enganado: na verdade, tudo naquela história fazia sentido. A história era fantástica. Os atores eram bons. Algumas cenas renderam boas risadas.
Quando saí da sala, um sentimento de indignação me comoveu. “Porque meu professor de literatura não indicou o livro para minha turma de ensino médio? Porque falou tanto em Iracema, e passou tão rápido pela semana de arte moderna?”. Parecia que a escola não havia me ensinado algo realmente útil (impressão que já alimentava nos 10 anos de Colégio Marista). Ao mesmo tempo, de repente fazia sentido o que a professora de comunicação e cultura havia falado sobre Oswald de Andrade. Não havia como discordar que não lhe davam a devida importância.
Durante a disciplina também fui apresentada ao manifesto antropofágico. Os sertões. Casa grande e senzala. (Aqueles livros que sempre ouvia falar, mas nunca busquei ou fui obrigada a ler). Descobri que podia mesmo me orgulhar do conterrâneo Darcy Ribeiro. Li tudo como uma criança que acabara de aprender a ler. E sempre me perguntava porque não era àquilo que me obrigavam no colégio (talvez porque se lesse obrigada, como tantas coisas que li na escola, acharia tudo cinza e repetitivo).
Na primeira vez, não entendi nada que Glauber Rocha falava em Di. Mais tarde, em casa, assistindo o vídeo pela segunda vez, algo já era compreensivo. Na terceira, lembrei de algo que havia lido para o vestibular: Flor da Morte, de Henriqueta Lisboa, aquele livro chato, de poesias iguais, que em 2004 passara batido. E foi assim durante todo o tempo em que me envolvia com a disciplina: toda aula, alguém me pegava pelos pés e me virava de cabeça para baixo. O mundo sob uma nova perspectiva. Cultura brasileira, povo, popular. O que essas palavras queriam mesmo dizer?
Vez ou outra, é verdade, ignorava a discussão em voga na sala de aula para conversar com o colega ao lado. “Agora o Wando é cult. Antes era kitsch”. E nessas conversas, descobri que me inquietava a polêmica acerca do popular. O que era popular? Será que Adorno tinha razão sobre a Indústria Cultural? O popular-distante, popular-intocado. A antropofagia. Era a resposta para tudo. Adeus purismo, agora eu tinha a consciência livre para gostar mais de rock inglês que de samba. (Samba é bom. Mas não é minha preferência, fazer o quê?).
O nome Glauber Rocha sempre surgia. Lembrava ter visto em algum lugar que nascemos no mesmo dia. Um dia, enfim, assisti Deus e o Diabo na Terra do sol. Só isso? Pensei. Com certeza, eu não havia compreendido o que havia por trás da história. Mas tarde vi Terra em transe, depois de ler um texto sobre. A teoria do transe! Completava a antropofagia. “Todos têm direito à consciência”. Era isso! Podia até ser que o povo, essa instituição mítica, tivesse mau gosto. Mas onde estava o bom gosto? De volta a Deus e o diabo: o que dizem os profetas e salvadores? Quem pode se definir como categoria aparte e acima do povo?
Todas essas descobertas deviam caber num quadrado de colcha de retalhos. Quem melhor que Drummond para resumir tudo? “A bunda que engraçada, está sempre sorrindo, nunca é trágica”. A bunda era o Brasil, sempre sorrindo. O Brasil era uma terra de zés ninguéns, graças a deus.
E o passeio na montanha russa chegou ao fim. Quando a gente desce do carrinho, continua meio tonto, demora para recuperar. O frio na barriga incomoda, mas vale a pena. Durante o looping (a virada de cabeça para baixo), nunca tive coragem de abrir os olhos. Dessa vez eu tive, e vi que via tudo errado. De cabeça para baixo, descobri que “não havia uma garça na beira no rio, mas um rio na beira da garça”.